Entre o que desenhamos e implementamos e a realidade de quem utiliza as nossas soluções existe frequentemente um espaço invisível de exclusão. Um espaço que, na maioria das vezes, permanece invisível até que alguém — com necessidades diferentes das antecipadas — tenta atravessá-lo.
É neste momento que compreendemos que aquilo que imaginávamos ser universal pode, na verdade, estar a criar barreiras inesperadas e a excluir uma pessoa de usar o nosso produto, aceder ao nosso serviço ou exercer o seu pleno direito ou dever.
Quando pensamos em acessibilidade, tendemos a focar-nos nas limitações físicas ou cognitivas. Mas a exclusão digital manifesta-se de formas muito mais subtis:
- Na língua e linguagem que usamos;
- Nas metáforas e imagens que escolhemos;
- Nos requisitos tecnológicos que impomos;
- Nos pressupostos culturais que julgamos universais;
- Nas assunções que fazemos sobre como as pessoas pensam e se comportam, etc.
A evolução do design digital tem sido marcada por uma progressiva consciencialização da necessidade de criar soluções que sirvam verdadeiramente todas as pessoas. Este movimento não representa apenas uma mudança técnica ou tecnológica, mas sobretudo uma transformação na forma como concebemos e desenvolvemos soluções digitais.
Reflete também, esperamos nós, uma sociedade cada vez mais consciente da sua diversidade e da necessidade de inclusão, com uma compreensão mais profunda de como diferentes pessoas interagem com a tecnologia e como as nossas decisões de design impactam essa interação.
Da dimensão da exclusão
Quando, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 16% da população mundial, ou seja, 1 em cada 6 pessoas, vive com algum tipo de deficiência, não falamos apenas de uma pequena franja da população ou de casos extremos de uso.
Se a estes números juntarmos pessoas com incapacidades temporárias ou situacionais, na verdade podemos estar a falar de todos nós, que num dado momento ou contexto estamos incapacitados do pleno uso de um produto ou serviço.
A mesma OMS alterou profundamente o nosso paradigma de compreensão da deficiência quando introduziu o seu modelo biopsicossocial, apresentado na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF).
Este modelo define a deficiência não apenas como uma característica individual inerente à pessoa, mas também como o resultado da interação entre a pessoa e o seu ambiente.
Neste sentido, a deficiência ou incapacidade manifesta-se nos pontos de interação entre a pessoa e a sociedade. E a exclusão física, social e cognitiva acontece quando existe um “desencontro” nessas interações, quando o ambiente cria barreiras à participação plena do indivíduo na sociedade.
No contexto digital, isto significa que a inacessibilidade não é uma consequência das limitações dos utilizadores, mas sim das decisões que tomamos. Cada decisão de design é uma oportunidade para incluir ou excluir.
O caminho para a inclusão
O caminho em direção ao design inclusivo começou nos anos 70, na área da arquitetura, com o conceito de Design Universal. Esta abordagem propunha que os ambientes físicos deveriam ser concebidos para serem utilizáveis por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou design especializado.
O que começou como uma resposta às necessidades de acessibilidade em arquitetura – com inovações como rampas de acesso e portas automáticas – rapidamente se expandiu para outras áreas do design, estabelecendo os sete princípios do Design Universal que ainda hoje influenciam a nossa abordagem à inclusão.
Com a revolução digital, emergiu um foco específico na acessibilidade centrada nas adaptações técnicas para permitir o acesso de pessoas com deficiência a computadores e à internet. Começou-se com adaptações básicas – aumentar o tamanho do texto, adicionar descrições a imagens, garantir compatibilidade com leitores de ecrã.
Quando em 2007 trabalhei no, então, novo website do Instituto Nacional para a Reabilitação (INR) o maior desafio não foi garantir a adequação técnica às diretivas WCAG, mas sim assegurar que o conteúdo e navegação fossem adequados à diversidade cognitiva das audiências do INR.
Paralelamente, desenvolvia-se o campo da usabilidade, impulsionado por pioneiros como Jakob Nielsen, que estabeleceu heurísticas fundamentais para tornar as interfaces digitais mais intuitivas para todos os utilizadores. Esta evolução paralela da acessibilidade e usabilidade começou a evidenciar que as soluções inicialmente pensadas para pessoas com deficiência beneficiavam, na verdade, todos os utilizadores.
O design inclusivo emergiu como uma síntese natural desta evolução, incorporando as lições do Design Universal, os requisitos técnicos da acessibilidade digital e os princípios da usabilidade numa abordagem holística que reconhece a diversidade humana como norma e não como exceção.
A implementação do design inclusivo
O design inclusivo representa uma mudança de paradigma: de uma abordagem que procurava adaptar soluções para grupos específicos, para uma metodologia que procura criar soluções que funcionem bem para todos desde a sua conceção.
Contudo, não se trata apenas de uma questão de mentalidade. A implementação do design inclusivo requer uma metodologia sistemática e fundamentada:
- Pesquisa aprofundada com diversos grupos de utilizadores;
- Envolvimento dos utilizadores no co-desenho e exploração de soluções;
- Definição de requisitos que contemplem diferentes necessidades;
- Desenvolvimento iterativo com feedback constante;
- Testes com utilizadores representativos de diferentes perfis;
- Monitorização e ajuste contínuo após implementação.
Hoje, com interfaces adaptativas e inteligência artificial, surge no horizonte a capacidade de criar experiências que se ajustam dinamicamente às necessidades de cada pessoa. No entanto, esta evolução tecnológica traz consigo novos desafios e responsabilidades.
Os algoritmos que alimentam estas soluções precisam de ser treinados com dados representativos de uma população diversa, e os seus resultados devem ser constantemente monitorizados e ajustados para evitar enviesamentos. Os algoritmos aprendem com dados do passado, e o passado nem sempre é o melhor guia para um futuro mais inclusivo. Mas este é um tema que merece uma análise mais profunda num futuro artigo.
Acessibilidade e inclusão em Portugal
Portugal sempre esteve na linha da frente da promoção de legislação e na adoção de diretivas promotoras da acessibilidade digital, sobretudo nos serviços públicos, lançando ao longo dos anos várias iniciativas e promovendo equipas especializadas em questões de acessibilidade.
O Selo de Usabilidade e Acessibilidade, gerido pela AMA, vai além das questões técnicas de acessibilidade, avaliando também aspetos de usabilidade e experiência do utilizador. Este sistema de certificação representa um passo importante na promoção de boas práticas no desenvolvimento de serviços digitais em Portugal, apesar de ainda ter pouca expressão fora dos websites ligados à administração pública.
A entrada em vigor do European Accessibility Act (EAA) em julho de 2025 representa um ponto de viragem significativo para Portugal, expandindo significativamente o âmbito da acessibilidade digital obrigatória para o sector privado. Esta diretiva, mais abrangente que a legislação atual, impõe requisitos específicos para produtos e serviços digitais em sectores cruciais como banca, e-commerce, telecomunicações e transportes.
O desafio atual em Portugal reside não apenas no cumprimento técnico dos requisitos do EAA, mas na transformação cultural necessária para integrar verdadeiramente a acessibilidade e a inclusão no processo de desenvolvimento de produtos e serviços digitais.
A conformidade com o EAA não deve ser vista apenas como uma obrigação legal, mas como uma oportunidade para melhorar a qualidade dos produtos e serviços digitais e alcançar um público mais amplo.
Um caminho ainda a percorrer
A tecnologia, por si só, não resolve o problema da inclusão. Poderá até agravá-lo, se não for guiada por uma compreensão profunda das necessidades humanas. Cada linha de código, cada elemento de interface, cada algoritmo deve ser desenhado e desenvolvido com consciência do seu impacto potencial em diferentes grupos de utilizadores. Cada decisão é potencialmente uma decisão ética.
O nosso compromisso enquanto agentes de transformação digital será determinado pela nossa capacidade de equilibrar inovação tecnológica com responsabilidade social. Não se trata apenas de criar interfaces mais inteligentes ou algoritmos mais sofisticados, mas de desenvolver soluções que verdadeiramente servem e capacitam todos os utilizadores, independentemente das suas características ou limitações.
As organizações que adotam o design inclusivo como parte fundamental da sua estratégia de desenvolvimento beneficiam de vantagens significativas: maior alcance de mercado, melhor satisfação dos utilizadores, redução de custos de suporte, etc. Mas sobretudo estão do lado certo na defesa e promoção de direitos humanos básicos de acesso, equidade e igualdade de oportunidades para os seus clientes, colaboradores e demais stakeholders.
O design inclusivo é, fundamentalmente, um compromisso com a excelência no desenvolvimento de produtos e serviços. Requer rigor metodológico, investigação constante e uma visão clara do impacto que queremos ter no mundo.
À medida que a tecnologia evolui, este compromisso torna-se ainda mais crucial para garantir que a inovação serve verdadeiramente todas as pessoas e as organizações que o adotam. Para que diminua o espaço de exclusão entre nós.