O ano era 1970. O Brasil estava em plena ditadura militar, iniciada em 1964 e agravada com o Ato Institucional nº 5, o AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva. Perseguidos pelos militares, Caetano Veloso e Gilberto Gil, dois expoentes do movimento tropicalista, partem para o autoexílio em Londres, na Inglaterra. Com isso, Gal Costa fica “sozinha” no Brasil e torna-se praticamente a porta-voz da tropicália. Por aqui, a cantora se junta a Jards Macalé e Lanny Gordin, com quem tocava na época. “Fui muitas vezes a Londres. Claro que tinha uma influência muito grande de tudo que era tropicalista. Primeiro porque me engajei muito no tropicalismo. Segundo porque estava ali como porta-voz de Caetano e de Gil. Viajava e trazia coisas pra gravar”, conta Gal Costa ao Apple Music. Além de afastar Gal de seus amigos tropicalistas, a ditadura causou uma verdadeira escassez de compositores, principalmente aqueles que conseguiriam dar o ar contemporâneo para o seu novo trabalho, Legal (1970). “Estava aquela coisa assim, ‘pô, qual seria o repertório?’. Porque naquele momento encontrar repertório para Gal estava difícil. Na época, o que sobrou aqui éramos eu e Lanny, que já tocava com a gente, já tinha feito trabalhos anteriores com a chamada tropicália. E aí agregou Naná [Vasconcelos], que entrou na época em que eu estava fazendo o ‘Gotham City’”, relembra Jards Macalé, que fez a direção musical de Legal, além de tocar no álbum e compor três faixas: duas ao lado de Duda Machado, “Hotel das Estrelas” e “The Archaic Lonely Star Blues”; e “Love Try and Die”, com Gal e Lanny. “Aliás, ouvindo agora continuo achando que é contemporâneo, moderno pra c******. Mais barra pesada do que isso foi outro álbum dela, no qual também fiz a direção musical, que foi o [álbum Gal Costa, que tem a música] ‘Cultura e Civilização’, em que a gente radicalizou de vez. Aliás, a última faixa do álbum é uma música minha e de Capinam [‘Pulsars e Quasars’], é uma faixa louca”, celebra Macalé. “Esse é um dos álbuns de que mais gosto, superbonito. É bem moderno para a época, até para hoje também”, completa Gal Costa. Repressão Ao lembrar da época, Gal Costa conta que gostava muito de passar tardes na praia ao lado de Jards Macalé, nas Dunas do Barato – que depois ficaram eternizadas como as Dunas da Gal, homenagem a frequentadora mais famosa do que é hoje o Posto 9, em Ipanema –, mas diz que não era fácil viver no Brasil em tempos de ditadura. “As pessoas eram agressivas comigo na rua, porque me vestia daquele jeito que você vê nas fotos, com aquele cabelo. Fazia o penteado black power, usava umas roupas bem diferentes do comum. Então algumas pessoas chegaram a me agredir na rua. Era uma época muito difícil também, sentia muita angústia naquela época, mas lembro que trabalhar era muito prazeroso”, recorda Gal Costa. “Hippie naquela época, [com] aquele cabelo, aquela roupa, era totalmente discriminado pelas ‘pessoas de bem’; os caretas achavam aquilo um horror, um perigo, era um acinte, a conduta da gente naquela altura do campeonato era uma afronta. Roupa, cabelo, jeito, nós éramos hippies”, conclui Macalé. Capa tropicalista A capa de Legal é considerada uma das mais belas da discografia de Gal Costa e da música brasileira. Ela foi assinada pelo artista plástico Hélio Oiticica, um dos responsáveis pela estética tropicalista, e mostra Gal com sua cabeleira da época, formada por colagens de fotos em preto e branco. “Naquela época Hélio fazia muitos cenários, fez alguns cenários de shows que eu fiz. No primeiro show ele fez o cenário com sucata, depois ele fez o cenário do show ‘Deixa Sangrar’. Ele fez esta capa muito bonita, aquele cabelo com fotos de pessoas que ele conhecia e gostava, gosto muito. Tenho o maior orgulho de ter trabalhado com Hélio Oiticica”, explica Gal. Abaixo, Gal Costa e Jards Macalé comentam as dez faixas do álbum Legal: “Eu Sou Terrível” Gal Costa: “Abro o álbum com isso, faço naquele ritmo de rock. É um rock, uma homenagem, gosto muito das coisas do Roberto [Carlos, que assina a faixa ao lado de Erasmo Carlos]. Então gravei ‘Eu Sou Terrível’ bem rock mesmo, com o canto rasgado.” Jards Macalé: “A orquestração é do nosso querido maestro Chiquinho de Moraes, grande orquestrador, grande maestro, que trabalhava também com Jorge Ben, com uma galera da pesada. Ele também fazia orquestração para o [Wilson] Simonal. Gal escolheu abrir com “Eu Sou Terrível”. Na verdade, Gal escolheu todo o repertório dela. Ela é mais visceral que os próprios Roberto e Erasmo. Da jovem guarda, o que sobrou foi ‘Eu Sou Terrível’, dentro do quadro que a gente estava, ela queria dizer que era terrível mesmo. O Chiquinho fez um arranjo maravilhoso, puxado para a banda mesmo, para a banda de jazz.” “Língua do P” Gal Costa: “‘Língua do P’, eu não me lembro onde o [Gilberto] Gil fez esta música, se foi no Brasil ou se foi em Londres. ‘Língua do P’ é bem na atmosfera daquele momento, daquela época. Não tem muito o que dizer, é uma maneira de falar engraçada, que algumas pessoas conhecem, e o Gil fez uma música sobre isso.” Jards Macalé: “‘Língua do P’ é fantástica. Língua do P é uma brincadeira maravilhosa, e o Gil conseguiu fazer uma música só usando a língua do P. É fantástico!” “Love, Try and Die” Gal Costa: “‘Love Try and Die’ é uma música que fiz com o Macalé e com o Lanny. A gente estava brincando na minha casa e fez esta música. Ela é muito engraçada, tem a letra em inglês. Eu só fiz duas músicas na vida e esta é uma delas. Desta gravação eu lembro que eles estavam lá [no estúdio], acho que tinha Tim Maia, Erasmo. Entraram no estúdio e fizeram o coro comigo, fizeram tudo na hora, foi uma festa. Me lembro que foi isso, estava todo mundo lá no estúdio e as pessoas entraram e fizeram o vocal.” Jards Macalé: “‘Love, Try and Die’ é uma maluquice. Gal estava brincando de ‘c’mon, c’mon, c’mon, c’mon and die’, de brincadeira com Lanny num canto e Naná Vasconcelos numas congas lá, um negócio mais agudo. Só sei que Lanny estava brincando disso, ele e Gal, e aí eu falei: ‘Vocês têm que fazer uma segunda aí, porque senão vai ficar mal esse negócio de c’mon, c’mon, c’mon, c’mon and die’. Aí Gal fez a segunda parte, ‘c’mon, c’mon and die for me’, e aí veio o negócio. Aí fui ao banheiro, e Lanny estava brincando de fazer banjo na guitarra dele, ele faz um monte de coisa na guitarra, tanto que ele mesmo fala, ‘go, Lanny, go’, para ele mesmo sair improvisando. Mas aí eu pensei, a gente tem que fazer uma brincadeira de vocal, sei lá. Mas não tinha ninguém para fazer vocal, a não ser a gente mesmo. Aí fui ao banheiro, no corredor indo ao banheiro, eu pensando, ‘tem que ter um vocal’, e quem aparece no corredor? Erasmo e Tim Maia. Nem fui ao banheiro, já falei, ‘vocês topam fazer um vocal ali no álbum da Gal?’. Eles falaram, ‘claro’. Eles não estavam fazendo p**** nenhuma, para variar [risos]. Foram lá e fizeram um vocal maravilhoso. Erasmo faz [imita a voz], o Naná faz um vocal meio Louis Armstrong e o Lanny arrasa na guitarra, ele faz um banjo… E no meio da confusão a Nana [Caymmi] estava passando por ali e falamos, ‘opa!’. E não está creditado no álbum. Aí saiu essa faixa linda, a gente se divertiu muito, brincou muito, riu muito.” “Mini-Mistério” Gal Costa: “‘Mini-Mistério’ é uma música do Gil, não me lembro se ele fez em Londres, mas acho que foi em Londres, e eu gravei ‘Mini-Mistério’. Acho que ele fez lá em Londres, sou péssima para lembrar das coisas.” Jards Macalé: “De novo o Gil arrasando. Foi simples fazer esta faixa, o Lanny de novo, ele está no álbum todo arrasando.” “Acauã” Gal Costa: “Não me lembro da gravação do álbum, não me lembro como era, mas eu fazia ela ao vivo. Que era com um baixo, com a minha voz lá embaixo. É uma música do Zé Dantas, gravei também Luiz Gonzaga, gravei um pessoal que era muito bom, dessa atmosfera de canções, música sertanejas, do norte, que não eram muito valorizadas aqui no sul, né. Então o tropicalismo veio resgatar esses compositores de lá.” Jards Macalé: “Esta é a que eu mais gosto, em que o Lanny fez tudo sozinho, aquele som maravilhoso, ele fez uma levada, que é um baião lento. Uma levada de uma coisa envolvente, uma coisa hipnótica, ficou lindo. E que quebra o pau no final, que vira aquela puxada do ‘Eu Sou Terrível’ de novo. A gente passou por Luiz Gonzaga, pelo parceiro do Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira, e aí caímos em Zé Dantas. Esta canção é lindíssima; aliás, Lanny faz o som do pio do acauã, além de fazer aquela levada maravilhosa, faz os pios dos pássaros na guitarra.” “Hotel das Estrelas” Gal Costa: “Não me lembro muito da gravação deste álbum, mas me lembro perfeitamente da gravação de ‘Fa-Tal - Gal a Todo Vapor’ (1971), show que foi gravado ao vivo e no qual eu cantava esta música, que foi registrada no ‘Fa-Tal’, vou ter que reouvir. Aliás, você está me deixando curiosa, porque quero rever estas gravações feitas em estúdio.” Jards Macalé: “Aí caímos no ‘Hotel das Estrelas’. Das minhas coisas e do Duda [Machado], ela escolheu ‘Hotel das Estrelas’ e ‘The Archaic Lonely Star Blues’. ‘Hotel das Estrelas’ não tem muito o que falar. É uma coisa meio rock, meio não, é um blues rock. A gente fez ela ao vivo no estúdio.” “Deixa Sangrar” Gal Costa: “‘Deixa Sangrar” é uma canção que Caetano fez, não me lembro, não sei se ele fez lá [em Londres] ou aqui. Acho que ele deve ter feito lá. É uma música bem para o Carnaval. Eu gravava especificamente para o Carnaval da Bahia, de Salvador. Muitas músicas eu gravava para lá, eram lançadas aqui, mas eram feitas para lá. Esta música é uma delas, depois eu a regravei.” Jards Macalé: “‘Deixa Sangrar’ é o Carnaval. É a chamada para o Carnaval. Caetano estava muito triste lá [em Londres] e aproveitou para deixar sangrar. A gente fez esta faixa de Carnaval mesmo, para dar o tom da coisa do Carnaval mesmo.” “The Archaic Lonely Star Blues” Gal Costa: “Ela também é do Jards e do Duda. ‘The Archaic Lonely Star Blues’, que é uma gravação muito bacana.” Jards Macalé: “Ela é um blues mesmo e com o violão. Que é meu, um violão bem bossa nova mesmo. Aí termina novamente Chiquinho de Moraes puxando aquele final maravilhoso de banda de jazz americana, né? Só faltava Frank Sinatra cantar nela [risos]. Duda sempre gostou muito de escrever em inglês e português, em ‘brasileiro’. Então, tanto em ‘Hotel das Estrelas’ como em ‘The Archaic Lonely Star Blues’ tem essa coisa de misturar o inglês com o ‘brasileiro’, né?” “London, London” Gal Costa: “‘London, London’ Caetano fez em Londres. Esta eu trouxe de lá, gravei e foi um grande sucesso na época. Ficava na casa deles. Eu ia e tinha um quarto para mim lá. Fui umas seis vezes. Ficava na casa deles, a gente comia, saía e se divertia, na medida do possível. Ficava lá com eles, era uma delícia. A casa era grande, tinha três andares, era bem gostoso. Eu adorei a primeira vez que ouvi [‘London, London’], fiquei fascinada, com muita vontade de gravar. As coisas do Caetano eu gosto muito, né? Me identifico muito com elas. Achei linda ‘London, London’ quando ouvi, lindíssima.” Jards Macalé: “Tem um detalhe nesta gravação, que aliás não está creditado. ‘London, London’ foi gravada com a participação maravilhosa da Angela Ro Ro na gaita. A Angela Ro Ro estava lá em Londres com a gaitinha dela e nos ensaios, quando a gente estava ensaiando no Teatro de Cimento, que era o Teatro Tereza Rachel aqui no Rio de Janeiro, que era só um arcabouço de cimento. Num dos ensaios, alguém tocou uma gaita. E eu digo, ‘de onde saiu essa gaita?’. Olhei, estava a Angela Ro Ro ali, nem a conhecia direito. Aí, ‘vem, vem, entra aí para o ensaio’. Depois na gravação ela entrou também.” “Falsa Baiana” Gal Costa: “‘Falsa Baiana’ é de Geraldo Pereira. Este álbum é meio Fa-Tal e meio Legal, metade, metade. ‘Falsa Baiana’ eu tocava violão e cantava na época, com alguns improvisos, umas coisas assim.” Jards Macalé: “Finalmente vem ‘Falsa Baiana’, que é de Geraldo Pereira, né? Geraldo Pereira é nosso ídolo, pô. E é uma homenagem a João Gilberto, é uma citação de João [Gal faz um trecho do vocal de ‘Meditação’, de João Gilberto, no começo da faixa]. Eu pego o violão também à la João. Aí terminamos o álbum e nos divertimos a pampa.”
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